quarta-feira, 26 de junho de 2013

Preconceito

Por Roberta Bronaut

Hoje, quero falar sobre preconceito.

Não aqueles preconceitos sobre os quais a gente fala com distanciamento e que quase todos negam ter. Não é disso que quero falar.

Quero sim, conversar com vocês sobre os preconceitos que na hora “H” aparecem,

e que, depois, deixam a gente mais raso que um pires, com muita vergonha, se achando um cocô-da-mosca-que-voa-na-titica-do-cavalo-do-bandido-em-filme-de-quinta-categoria.

Pois aconteceu comigo isso.

Foi há alguns dias. E ainda mexe com meus pensamentos e emoções.

Vou contar, com pormenores e tudo mais.

Estava participando de  um evento que nem terminou muito tarde mas, o frio, a garoa e o ventinho fazem as ruas de Porto Alegre esvaziar cedo.

Por conta de descarregamentos de celular, me desencontrei do meu marido. Minha carona de luxo que iria me buscar.

Resolvi esperar em um shopping, há poucas quadras do local. “Uma oportunidade para caminhar pela cidade, olhar as pessoas e o movimento;” foi o que eu pensei.

Avançava pela avenida, distraída com os meus pensamentos borbulhantes quando me dei conta que estava atravessaria um trecho com árvores baixas que impediam a iluminação. Vi três silhuetas altas e esguias e que não tive dúvidas que eram prostitutas.

A dúvida de sempre: voltar? Seguir em frente? Que fazer?

Fiz o de sempre faço: conversei com Ele. Disse a Ele que, por mim estava tudo bem, que havia saído  de casa para apoiar o evento de uma amiga, e que a minha família me esperava.

Disse que era tudo com Ele, que fizesse o que fosse eu entenderia como uma prova, como um aprendizado.

Que eu extrairia daquilo, que eu nem sabia o que poderia ser, o melhor possível.

Segui firme. No meu ritmo. A medida que me aproximava, percebi que eram travestis.

Já fui agredida verbalmente e empurrada por um travesti há anos atrás enquanto esperava um táxi.

Ele pensava que eu estava “no ponto” dele.

Foi impossível evitar a lembrança.

Percebi que conversavam entre si e era a meu respeito. E eu seguia mantendo um mínimo de uma tranquilidade digna, ainda atrasei o passo para admirar  uma vitrine e pude ver que estavam se organizando. Nesta hora, pensei em atravessar a enorme avenida.  Mas o fluxo muito rápido, com semáforos distantes fariam de mim um alvo até mais fácil se a intenção deles era mesmo me abordar.

Retomei a caminhada, mãos nos bolsos do casaco, encolhida de frio no rosto e na barriga.

Pensei no quanto eu era irresponsável.

Porque não voltei quando tive tempo?

Estava a poucos metros de três travestis enormes, quase sempre estão armados pois, afinal, os coitados trabalham na rua, estão expostos a tudo.

Em pensamento pedi perdão ao Sidney e ao Diogo pela minha estupidez. Pedi a Ele que perdoasse minha arrogância e a minha inconsequência. Mas estava feito, precisava assumir a responsabilidade pela minha escolha infantil.

Entrei no “território escuro”. Agora estava realmente tensa.

Passei pelo primeiro que, pude perceber com o canto dos olhos, virou-se para me olhar pelas costas.

O segundo mais adiante poucos metros, veio em minha direção.

“É agora!”

Eu pensei.

Mais adiante o terceiro travesti deixava o meio fio onde estava e caminhou sem pressa, com a segurança de quem sabe quem é o intruso, na minha direção também.

“Estava cercada. Sem a menor chance.”

O segundo travesti me encarou e veio em minha direção. Não vi mais nada.

Naquela fração de segundos que levei para abrir os olhos escutei barulho e olhei para trás.

Os dois travestis imobilizaram um homem que não sei de onde saiu. O terceiro travesti veio de fato dar apoio, mas ficou apenas olhando. Foi desnecessária sua participação.

Estava paralisada. Não entendia nada.

O travesti que estava segurando o homem olhou prá mim e me disse:

- Quando tu estava vindo,  eu vi que ele iria te assaltar e falei pras meninas que se ele viesse prá cá, iria “fazer” ele.

Emudeci.

Nenhum músculo meu se movia.

Um dos travestis me disse:

- A gente está trabalhando. Somos limpas. A gente não mexe com drogas. Quem faz programa e assalta é quem usa droga, moça. A gente tá fora.

O travesti que segurava o homem repetia:  - Tu não vai assaltar ninguém aqui, tu entendeu?

O homem me olhava apavorado.

Parecia que me suplicava ajuda, mas eu não fiz nada. Não consegui. E confesso, não sei o que faria.

Estava preparada para tudo menos para aquilo.

Era muita coisa para fazer junto: respirar, retomar a capacidade de raciocinar, ficar ou sair correndo.

Um dos travestis, que lê pensamentos tenho certeza, me disse com a voz mais doce do mundo:

- Vai embora moça. Os “home” logo estão aí, podem querer te levar prá fazer BO. Não aconteceu nada contigo então, vai embora.

Não senti meus pés pisarem no chão. Nem me lembro como fui parar dentro do shopping.

Já estava bem mais calma e foi ótimo demorar a conseguir falar com o Sidney que ficou sem carga no celular.

Me deu um tempo precioso prá avaliar, minimamente, o que me aconteceu.

Naquela noite nem adiantou o chá de erva de São João. Dormi quase nada.

Alguns dias se passaram. Eu ainda pensava nas pessoas que me ajudaram. Ainda ouvia o barulho do metal da faca que o assaltante portava caindo no chão. Os dias se passaram e as imagens voltavam, se   repetiam.

Fiquei fixada mas não era só isso.

Dentro de mim, precisa encerrar aquilo. Eu falo muito, passei por tudo isso sem dizer uma palavra sequer.

Precisava botar prá fora.

[caption id="attachment_781" align="alignright" width="199"]Gola com o fio Majestoso - Foto: Divulgação Círculo Gola com o fio Majestoso - Foto: Divulgação Círculo[/caption]

Sabe o fio Majestoso da Circulo?

Com ele fiz três cachecóis, cada um de uma cor diferente. Embrulhei para presente. Fiz três cartões.

Pensei em mandar entregar. Mas não seria suficiente.

Decidi voltar lá.

A medida que atravessava a cidade, a garoa ficava mais intensa. Estariam lá?

Segui mesmo assim. Agora estava decidida: se não estivessem, voltaria outra vez.

O mundo está muito feio, triste, brutal. Quando recebemos uma demonstração de atenção devemos valorizar.

Me lembro de ter pensado isso.

Este era o meu jeito de retribuir, de devolver o bem que recebi, de dizer o que faltou ser dito na semana anterior.

Já estava bem perto. Pude ver alguns carros reduzindo a velocidade. Elas estavam lá.

Não tinha percebido como estavam com pouca roupa naquele final de tarde.

Como alguém teve a ideia de chamar esta de “vida fácil”??

Poderia ser vida triste. Muito mais adequada.

Parei adiante. Desci com uma sacola com três presentes. Quando me aproximei, ingenuamente perguntei:

- Vocês lembram de mim?

Me examinaram de alto a baixo como se eu fosse uma fruta de fim de feira. Foi hilário!

- Não... respondeu uma delas. E me deu as costas.

Uma outra, a que me mandou embora e que lê pensamentos, disse:

“É aquela da semana passada, lembra?”

A da ponta, a terceira aproximava-se devagarinho...

- Quem? A primeira perguntou.

E eu intervi:

- Vocês perceberam que eu seria assaltada, renderam o homem. Lembram?

- Isso acontece quase todo dia, moça. Mas agora lembrei de ti. Que tu quer, aqui?

- Eu voltei prá dizer, “Muito Obrigado”.

- Só prá isso?

- Não.  Também voltei prá trazer uma lembrança prá vocês. Espero que gostem.

E mostrei a sacola.

Pareciam crianças. O fio é lindo, glamouroso. Dá um efeito divino na peça. Elas amaram!

Fiquei feliz com a felicidade delas.

Expliquei que gosto de artesanato e que eu mesma fiz as peças.

Que pensei em algo que aquecesse e que fosse algo bonito, chamativo para que usassem no trabalho.

Conversei pouco com elas que me explicaram que estavam agradecidas mas, que eu não deveria voltar lá para falar com elas pois isso espanta os clientes.

Me disseram que eu tenho cara de “mãe de família”, os clientes temem o reconhecimento.

Ficar longe seria uma forma de ajudá-las.

Compreendi, agradeci e disse que faria orações por elas.

Uma delas me disse que não fizeram nada por mim.

Que fizeram por elas mesmas pois mantendo o lugar ”limpo” mantém a policia longe delas e a clientela fica tranquila.

Respondi que esta era a explicação dela mas que, prá mim, Ele nos usa.

E usou as três, com seus conhecimentos adquiridos na vida, para me proteger e para que eu entrasse em contato com muitos sentimentos.

Elas riram de mim como a gente ri de uma tolice infantil. Riram com vontade!

Fui embora.

Quando entrei no carro ainda vi que estavam orgulhosas, ajeitando o presente no pescoço.

Aquela que lê pensamentos, me seguia com os olhos e, sem erguer o braço, acenou timidamente.

Respondi o aceno com entusiasmo enquanto pedia em pensamento que Ele continuasse a intuir as pessoas, todas as pessoas, a fazer o bem.

Seja com o pretexto que for.

Eu já ganhei muito Dele. Ganho todos os dias e, se puder pedir mais alguma coisa, peço que Ele me faça uma pessoa capaz de perceber onde de fato estão os perigos.

As vezes a gente deposita nosso amor ou nosso temor sobre pessoas ou situações que não merecem.

E porque fazemos isso?

Por causa dos nosso conceitos, preconceitos e achismos. Nosso foco fica voltado para o que não merece a nossa atenção, enquanto desguarnecemos o que de fato nos ameaça ou nos merece.

Que a gente não avalie as pessoas pela forma como se veste, pelas companhias, pelo local onde está.

Eu,  você e os demais somos muito diferentes mas, no fundo somos iguais que tivemos oportunidades diferentes.

3 comentários:

  1. Lindo!

    Obrigada por compartilhar.

    E obrigada por chamá-las de "elas" no meio do seu texto <3

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  2. Isto daria um conto!

    Adorei o depoimento.

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  3. Estou com o coração aquecido! Que experiencia, que sacadas e que finalizada vc deu! Grata pelas suas palavras. Essa é a famosa máxima de que se dividindo se multiplica. Prazer em ler e vivenciar contigo essa experiência!!!

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