segunda-feira, 18 de maio de 2015

Tramas de esperança e oportunidade

Com as agulhas nas mãos, sentenciados ganham a oportunidade de redução da pena, aprendem um ofício, estudam e ainda têm salário




[caption id="attachment_3329" align="alignright" width="300"]Raquell Guimarães depois de palestra realizada no 4º Congresso Brasileiro de Tricô Raquell Guimarães depois de palestra realizada no 4º Congresso Brasileiro de Tricô - Foto: Iris Alessi[/caption]

“Dar uma segunda chance para quem não teve a primeira, é digno”. A frase dita por Raquell Guimarães, criadora da Doisélles, durante a palestra de abertura do 4º Congresso Brasileiro de Tricô, talvez seja a que melhor descreva o projeto Flor de Lótus, idealizado por ela.


O projeto nasceu em 2008, quando Raquell procurava mão de obra para a confecção de peças em tricô para a sua marca. Após uma encomenda de atacado em um salão de negócios em Paris, ela precisava de profissionais que dedicassem tempo para produção de suas roupas, mas as pessoas que sabiam fazer não estavam disponíveis para trabalhar com carteira assinada, uma vez que eram senhoras que teciam como prenda doméstica.

Foi aí que ela recordou-se de uma experiência que havia vivido anos antes. Em São Paulo, Raquell, que havia saído de Juiz de Fora a fim de fazer uma entrevista no Aeroporto de Congonhas para ser aeromoça, mas quando chegou na rodoviária pegou o metrô para o lado errado e foi parar em frente ao Carandiru. Foi sua primeira cena em São Paulo e aquela cena não saiu da sua cabeça.

Anos mais tarde, Raquell foi conhecer o local que estava começando a ser desativado. “Foi o momento da minha vida. O que eu senti ali dentro. De repente você entra num lugar que é o inferno. Aquilo lá é um inferno.” Mas Raquell, ao invés de repelir o inferno, tentou entendê-lo. A partir daquele momento, ela começou a perguntar-se: “quem é que sabe o que é nascer numa sociedade de miséria absoluta? Eu não sabia. Eu nasci em casa de papai e mamãe. Essas pessoas nunca tiveram um cafuné na cabeça.”

A ideia surgiu e Raquell levou-a adiante, mas o presídio de sua cidade lhe colocou um desafio: trabalhar com homens ao invés de mulheres.

Foi no primeiro encontro com os detentos, ao ouvir a grade bater atrás dela, que Raquell sentiu que aquilo era uma cadeia. No início, os sentenciados acharam que ela era uma infiltrada, não poderiam crer que fosse alguém para levar benefício a eles, mas com o trabalho, dedicação e principalmente respeito, a estilista conquistou o respeito dos presidiários e abstraiu a pena de cada um deles. “Vi seres humanos”.

[caption id="attachment_3333" align="alignleft" width="300"]Detentos trabalhando em peças de tricô Detentos trabalhando em peças de tricô - Crédito: http://www.doiselles.com.br/blog/[/caption]

Com o trabalho realizado dentro da penitenciária, esses homens têm direito à remissão de pena. A cada três dias trabalhados, um dia da pena é abatido. Raquell salienta a grandeza dos seus tricoteiros. “Imagina esse cara, ter a grandeza de pegar numa agulha e dizer: ‘eu quero aprender esse negócio, porque eu quero ter um trabalho honesto’. E esse negócio é coisa de mulher, é coisa de senhora. Que na nossa sociedade já é lindo. Imagina um dois por dois [um homem grande]. Imagina um ex-traficante...”.

Os meninos de Raquell ganharam o mundo com seus trabalhos manuais, ganharam a confiança da estilista e ganharam a liberdade que o trabalho digno dá, mesmo estando encarcerados. Raquell trabalha com os que têm penas muito altas e no tempo que eles ficam com ela, a estilista os estimula na escola e outros programas culturais para dar um suporte intelectual e emocional para o momento da saída, tão desafiador e complexo quanto à entrada no cárcere. “O que eu percebo é que quando eu chego ali dentro eu estou retomando com eles um estágio de vida que eles nunca viveram.”

“Eu ganhei um entendimento mais consciente, uma abertura de consciência, dos conceitos que a gente só entende na teoria e não entende na prática, porque não os vivencia. [...] Aqui fora, a gente não tem noção do que é liberdade.”

[caption id="attachment_3334" align="alignright" width="300"]Raquell e seus meninos Raquell e seus meninos - Crédito: http://www.doiselles.com.br/blog/[/caption]

Raquell não imaginava que a empresa ia ganhar a projeção que tem hoje e nem que as pessoas iriam olhar para o projeto com bons olhos. “No princípio, eu não falava para ninguém que o trabalho é feito em presídio. Eu passei a falar quando eu me transformei com aquilo”. Raquell tinha medo da rejeição. “As pessoas são muito preconceituosas, muito críticas e gostam muito de tachar a punição ao outro.”

Muitos dos meninos que já cumpriram suas penas, passaram a trabalhar com ela no escritório contratados com carteira assinada. Atualmente, a Doisélles produz aproximadamente três mil peças por coleção.

 

Quem é Raquell Guimarães

[caption id="attachment_3331" align="alignleft" width="168"]Foto - Iris Alessi Foto - Iris Alessi[/caption]

Mineira de Juiz de Fora, Raquell Guimarães, não é necessariamente da moda, como ela mesma diz. “Eu sou do tricô e do crochê”. Foi com as maravilhas do tricô e do crochê que Raquell foi parar no mundo todo. A família da estilista é da área confecção e tecelagem e ela cresceu nesse meio, entre teares industriais.

Mas a tradição de tricotar e crochetar sempre fez parte da família, principalmente das mulheres da família. “Com cinco anos de idade eu já pegava na agulha e já fazia meus pontos baixos e altos todos tortos”, recorda. Com doze anos, Raquell fez sua primeira blusa.

Aos 18 anos, mudou-se para São Paulo para ser comissária de bordo. Como comissária, ela pode comprar lãs de todos os cantos do mundo e começou a fazer roupas para as amigas e ganhar dinheiro com o tricô.

Cursou moda, e na faculdade já fazia os trabalhos em tricô e crochê. Isso foi desde o primeiro dia de aula. “Posso dizer que eu sei pouquíssimo sobre costura, modelagem na malha e no tecido plano. Eu caminhei minha produção para o manual, para o handmade”.

Estudou na França e em Londres, foi figurinista de novela e também da Xuxa, mas a vida deu sinais que o tricô e o crochê eram seu caminho. Raquell caiu na moda, porque tudo o que ela sente, toca, faz e vê transforma-se em tricô e crochê. Sentiu os sinais que a vida lhe dava e preparou uma coleção, abriu uma empresa e correu atrás do que queria fazer.

[caption id="attachment_3336" align="alignright" width="200"]Peça em tricô da Doisélles Peça em tricô da Doisélles - Crédito: Divulgação[/caption]

“O meu lado bom da história é todo ligado ao tricô. Ele está todo ligado a isso que eu aprendi a fazer com a mão. Essa coisa de passar o fio no pescoço, pegar uma agulhinha numa mão a outra agulhinha na outra é o que me faz feliz. É a hora que eu descanso, é a hora que eu espaireço, que eu me sinto boa, é hora que eu sinto orgulho de mim.”

Atualmente, Raquell não se preocupa com tendência. “Meu trabalho é muito autoral e a única restrição que eu coloco na hora da criação é me prender à cartela de cor”. É o fio encontrado naquelas cores que vai dizer o que dá para fazer.

 

Raquell Guimarães é tricoteira, é crocheteira, é humana, é amor, é sensação, é poesia.

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